Conexões

Em tempos de afastamento social – isolamento ou quarentena, como você quiser chamar -, somos mais do que nunca convocados a buscar formas de conexão com o mundo, com as pessoas, com nós mesmos. Se antes conectar-se parecia algo a se fazer para daqui alguns dias – “que marquemos um café na próxima semana” -, hoje, muitos de nós sentimos falta do simples encontrar os pais, os filhos, os netos, os avós, os amigos, os namorados. Como num estranho apocalipse dos afetos, nos sentimos perdidos: além do medo da morte, já vivemos um luto da vida que vivíamos antes.

O luto machuca, dá raiva, dá vontade de gritar, faz chorar ou produz aquele silêncio inexplicável carregado de inquietude. E o que fazer com a inquietude do luto, a saudade de nós mesmos?

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A arte de contar histórias

A arte de contar histórias – histórias de fadas, bruxas, princesas e heróis – é de longuíssima data e tem ajudado os povos a lidar com seus monstros e com suas jornadas mais intensas. Lidar com a realidade nem sempre é fácil. Compreender as exigências do mundo real é útil para que possamos trabalhar, pagar as contas, cumprir as tarefas cotidiana. Mas a cultura é o que nos alimenta: é o que nos permite ser. Como diz Manoel de Barros:

Não aguento ser apenas
um sujeito que abre
portas, que puxa
válvulas, que olha o
relógio, que compra pão
às 6 da tarde, que vai
lá fora, que aponta lápis,
que vê a uva etc. etc.
Perdoai. Mas eu
preciso ser Outros.
Eu penso
renovar o homem
usando borboletas.

Reinventar a infância em nós a cada dia é nos permitir ser deveras humanos. É saber que desde pequenos a imaginação é nosso guia. Se perdemos a mão demais e caímos profundamente no mundo da imaginação, podemos ser tomados pela loucura – ou por uma infância eterna. Porém, se, por outro lado, erramos a mão e travamos os pés numa realidade árida, neurotizamos e também adoecemos. Então já não sabemos ser outros, já não sabemos desenhar ou cantar a nossa ansiedade e ela grita em nosso corpo. Ou a depressão nos derruba na cama. Por excesso de cobrança, definhamos de realidade. Sem o mágico, não reconhecemos os monstros e as bruxas e não sabemos como lutar com ou contra eles.

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Fim de um relacionamento

Quando um relacionamento amoroso chega ao fim, atravessa-se um processo de luto. É como se algo ou alguém muito importante houvesse morrido, ainda que a outra pessoa esteja viva. Sente-se falta do tempo preenchido pela presença, do fazer junto, dos planos construídos lado a lado. Sente-se falta do esperar chegar, do aguardar o próximo encontro e de todas as pequenas saudades que o relacionamento proporcionava no dia-a-dia. Sente-se saudade do que não aconteceu e, não raro, ainda que que o relacionamento tenha sido ruim ou mesmo abusivo, as lembranças boas colorem os pensamentos fazendo a dor ficar mais forte.

Acredito que é preciso sentir a dor. Como todo luto, é preciso atravessá-lo, chorá-lo, vivenciá-lo. Por vezes, ele se apresenta como uma montanha russa ou como ondulações, com altos e baixos de sentimentos e memórias – raiva, saudade, amor, ternura, tristeza. Todo fim é um luto. Mas é sempre importante pensar que o fim pode também ser um recomeço, especialmente no caso específico do fim de um relacionamento. Continue lendo

De partida

Despedimo-nos de nós mesmos todos os dias um pouquinho. Porque a cada instante que passa não somos exatamente os mesmos. Porque vivemos em constante transformação. Despedimo-nos de nós mesmos sempre. Mas especialmente em momentos de mudanças que são importantes para nós. Quando dizemos adeus a roupagens antigas. A adjetivos que não nos cabem mais. A pessoas e situações que faziam parte de nossas vidas.

Estamos sempre de partida para um novo ponto de chegada. Na maior parte das vezes, não temos a menor ideia de que ponto é esse. Outras vezes, podemos até tentar adivinhá-lo, mas teremos inevitáveis surpresas pelo caminho. Pois que navegamos para horizontes incertos. E a graça é isso. O filho que vai chegar. O curso que vai começar. O novo lugar para morar. O primeiro emprego. O novo emprego. O término de um contrato de trabalho. O fim de um relacionamento amoroso. O início de um novo. O saber estar sem um relacionamento. Horizontes incertos: as perdas. As saudades. Aquele adeus que não foi possível dizer. Aquele adeus dito e repetido mil vezes até encontrar a forma mais adequada de expressar. Aquela confissão que andava no fundo na garganta. Sobre se permitir ser quem se é. Horizontes incertos: um reencontro. Um novo encontro. O fim de um ciclo de dor. O reconhecer-se no espelho como uma figura completamente diferente: e, de repente, você nasce outra vez. Continue lendo

Dezembro

Chega dezembro, período de festas –  ainda que não haja festa em todas as partes, ainda que se vistam de sombras alguns lares. Chega dezembro. Tempo em que muitas e muitas pessoas repensam o ano, os erros e os acertos. E se propõem a renovações. Surgem então as listas de promessas de ano novo: ser mais saudável, encontrar um amor, perder peso, mudar de emprego, iniciar um novo curso, começar uma faculdade, juntar dinheiro. Corresponder a padrões preestabelecidos. Ou romper com todos os padrões do mundo. Viajar mais. Brigar menos. Ser mais feliz.

Chega dezembro, período de festas – ainda que não haja festa em todas as partes, ainda que se vistam de sombras alguns lares. E é porque não há festa em todas as partes e porque alguns lares se vestem de sombra que convido-os aqui a reflexões. O período de fartura para alguns é momento de fome para outros. O momento de renovação e promessas para uma pessoa é período de adeus e de luto para outra Continue lendo

Finados

A saudade é o revés de um parto

A saudade é arrumar o quarto

do filho que já morreu

(Chico Buarque – Pedaço de Mim)

 

Vamos falar de saudade, da dor da partida, do pesar de partir. Morte, distância, medo, tristeza e separação. Falar dos longos tempos no hospital acalentando um irmão. De quando o amor acaba e de quando o filho decide sair. Vamos arrumar o quarto dos que se foram, guardar aquilo que ainda cabe para nós e doar o que não podemos mais reter. Vamos levar flores aos cemitérios e conversar com nossos mortos. Vamos seguir em frente também.

Vamos dizer da dor de perder um filho que não nasceu. Vamos falar das mães que perderam seus filhos pra violência. E vamos falar dos pais. E dos filhos. Vamos falar da dor dos irmãos, amigos, cônjuges, amantes. Vamos nos lembrar de que partir é difícil, mas às vezes é a única escolha possível. Vamos falar do adeus aos nossos amores que não se comunicam como nós: existem amores que latem, amores que miam, amores de tantos ruídos e silêncios de amor. Continue lendo

No seu tempo, na sua hora, nos seus passos

Há quem diga: “Apresse-se! Já era hora de você estar se levantando da cama”; “Mas você não está se esforçando nada”; “Ansioso por quê? Não há nada acontecendo.”

Sabemos. Há sempre mundos acontecendo dentro de nós. Tendo a escrever sobre o tempo e sobre os movimentos sutis porque é assim que as transformações ocorrem. Hoje gostaria  de convidar você a olhar a sua história. Seus passos mais recentes e mais antigos. Todas as lutas travadas e todas as vezes em que você venceu essas lutas. Não precisam ser lutas que os outros – familiares e amigos – possam enxergar: isso é entre você e você.

Você sabe o quanto foi sufocante ouvir palavras duras aos 8 anos de idade e seguir – aos trancos e barrancos – acreditando em si. Você sabe o quanto foi custoso começar uma faculdade e você foi lá. E começou. E eu não sei se você continuou, mas você começou. E você sabe o quanto foi custoso – emocionalmente e financeiramente – continuar. Continue lendo