Fim de um relacionamento

Quando um relacionamento amoroso chega ao fim, atravessa-se um processo de luto. É como se algo ou alguém muito importante houvesse morrido, ainda que a outra pessoa esteja viva. Sente-se falta do tempo preenchido pela presença, do fazer junto, dos planos construídos lado a lado. Sente-se falta do esperar chegar, do aguardar o próximo encontro e de todas as pequenas saudades que o relacionamento proporcionava no dia-a-dia. Sente-se saudade do que não aconteceu e, não raro, ainda que que o relacionamento tenha sido ruim ou mesmo abusivo, as lembranças boas colorem os pensamentos fazendo a dor ficar mais forte.

Acredito que é preciso sentir a dor. Como todo luto, é preciso atravessá-lo, chorá-lo, vivenciá-lo. Por vezes, ele se apresenta como uma montanha russa ou como ondulações, com altos e baixos de sentimentos e memórias – raiva, saudade, amor, ternura, tristeza. Todo fim é um luto. Mas é sempre importante pensar que o fim pode também ser um recomeço, especialmente no caso específico do fim de um relacionamento. Continue lendo

De partida

Despedimo-nos de nós mesmos todos os dias um pouquinho. Porque a cada instante que passa não somos exatamente os mesmos. Porque vivemos em constante transformação. Despedimo-nos de nós mesmos sempre. Mas especialmente em momentos de mudanças que são importantes para nós. Quando dizemos adeus a roupagens antigas. A adjetivos que não nos cabem mais. A pessoas e situações que faziam parte de nossas vidas.

Estamos sempre de partida para um novo ponto de chegada. Na maior parte das vezes, não temos a menor ideia de que ponto é esse. Outras vezes, podemos até tentar adivinhá-lo, mas teremos inevitáveis surpresas pelo caminho. Pois que navegamos para horizontes incertos. E a graça é isso. O filho que vai chegar. O curso que vai começar. O novo lugar para morar. O primeiro emprego. O novo emprego. O término de um contrato de trabalho. O fim de um relacionamento amoroso. O início de um novo. O saber estar sem um relacionamento. Horizontes incertos: as perdas. As saudades. Aquele adeus que não foi possível dizer. Aquele adeus dito e repetido mil vezes até encontrar a forma mais adequada de expressar. Aquela confissão que andava no fundo na garganta. Sobre se permitir ser quem se é. Horizontes incertos: um reencontro. Um novo encontro. O fim de um ciclo de dor. O reconhecer-se no espelho como uma figura completamente diferente: e, de repente, você nasce outra vez. Continue lendo

Finados

A saudade é o revés de um parto

A saudade é arrumar o quarto

do filho que já morreu

(Chico Buarque – Pedaço de Mim)

 

Vamos falar de saudade, da dor da partida, do pesar de partir. Morte, distância, medo, tristeza e separação. Falar dos longos tempos no hospital acalentando um irmão. De quando o amor acaba e de quando o filho decide sair. Vamos arrumar o quarto dos que se foram, guardar aquilo que ainda cabe para nós e doar o que não podemos mais reter. Vamos levar flores aos cemitérios e conversar com nossos mortos. Vamos seguir em frente também.

Vamos dizer da dor de perder um filho que não nasceu. Vamos falar das mães que perderam seus filhos pra violência. E vamos falar dos pais. E dos filhos. Vamos falar da dor dos irmãos, amigos, cônjuges, amantes. Vamos nos lembrar de que partir é difícil, mas às vezes é a única escolha possível. Vamos falar do adeus aos nossos amores que não se comunicam como nós: existem amores que latem, amores que miam, amores de tantos ruídos e silêncios de amor. Continue lendo

A arte de perder

“A arte de perder não é nenhum mistério
tantas coisas contém em si o acidente
de perdê-las, que perder não é nada sério.
Perca um pouco a cada dia. Aceite austero,
a chave perdida, a hora gasta bestamente.”

Elizabeth Bishop

Viver é deixar para trás pequenos pedaços de si. É reconhecer essas perdas e encontrar nossos modos singulares de lidar com elas. Desde pequenos aprendemos a nos separar de quem amamos – ainda que haja retorno, ainda que haja acalento, ainda que haja cuidado. Aprendemos a perder o espaço que ocupamos, a nos desfazer de objetos, a abandonar a infância. Como parte constituinte do viver, perder é morrer um pouco. E renascer. Continue lendo

É permitido chorar

Eu vou falar dela, mas não é fácil. Ela, que nos dá a compreensão do pôr-do-sol e de tantos outros adeuses, é quase proibida. É quase errado dizer o nome dela em voz alta: tristeza. Ela é aquela coisa que existe na poesia e nas letras de música, naquele samba de saudade e naquele filme bonito e cheio de amor. Mas em nós, não: em nós ela não pode existir. Quando algo doloroso nos ocorre, somos convocados erguer a cabeça, sacudir a poeira e dar a volta por cima. Assim, sorrindo. Porque somos fortes. Porque não podemos sucumbir à dor.

Atendendo pacientes em tratamento de câncer, escuto tantas vezes a estranha associação entre “ser forte” e “não chorar” ou “não ficar triste”. Como se só no riso aberto residisse a força. Muitas vezes é um familiar ou amigo, cheio de intenções amorosas, que faz tais exigências: “você precisa ser forte, precisa manter um sorriso no rosto, o câncer não vai te derrubar – e deixa quieto que o cabelo depois nasce – e, se você ficar triste, pode ser ruim para o tratamento ”. Cada um de nós pode estar nesse lugar de exigir do outro ou de si mesmo o impossível: uma força que não contempla a fragilidade da vida, do tempo, dos dias. Uma força que não permite a lágrima, o pedido de um colo, a lembrança de um samba, a saudade de um ontem, o desejo de um nunca.
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