Ele não batia nela, mas costumava dizer que era o único no mundo capaz de suportar suas crises e manhas. Ela tomava antidepressivos e se identificava com o monstro da depressão, sem se dar conta de que o companheiro – que se dizia seu maior cuidador – era o maior algoz.
Ele não batia nela, mas criticava seu corpo. Dizia que se fosse mais magra, que se usasse calcinhas mais novas, que se cuidasse mais do corpo ele não precisaria procurar outras. Ele queria um relacionamento aberto. Só para ele.
Ele não batia nela, mas exigia que ela usasse as roupas que ele escolhia. Nada de saia curta, nada de maquiagem forte, nada de decote. Ele tinha um ciúme forte que chamava de amor. E, certa vez, ele segurou forte no pulso dela e gritou alto. Mas não, ele não batia nela.
Ele não batia nela, mas forçava a barra no sexo, exigindo posições que ela não desejava. No momento que ele desejava. Mas ela não dizia “não”, por medo de perdê-lo, por medo de que ele “procurasse fora”, por medo de que ele não a amasse mais.
Ele não batia nela, mas exigia que ela cuidasse da casa e dos filhos sozinha e impediu que ela terminasse a faculdade. Dizia que ela era péssima mãe e que ele era um ótimo marido por aturá-la assim. Ele saía e só voltava de madrugada e depois pedia perdão.
Todos eles pediam perdão. Depois de gritar, humilhar, criticar. Eles mandavam que elas calassem seus choros e diziam que elas eram insuportáveis. Mas eles não batiam nelas. Eles pediam perdão.
Eles faziam parecer que eram os únicos capazes de amá-las. Eles às vezes as sustentavam e elas tinham medo de ficar sem nada, abandonadas com seus filhos. Eles não batiam nelas mas por algum motivo elas tinham um secreto medo de morrer nas mãos deles. Eles não batiam nelas, mas as ameaçavam. Batiam na mesa.
Mas eles eram doces às vezes. E davam flores. Eram delas os melhores amigos – enquanto buscavam afastá-las de outros amigos, especialmente homens. Eles conheciam os seriados preferidos delas e já haviam escrito poemas de amor. Eles se diziam apaixonados. Eles pediam perdão.
O relacionamento abusivo é um ciclo de agressão/humilhação, culpa, perdão, lua-de-mel e retorno à agressão/humilhação. Como nos exemplos dados, muitas vezes não chegam à violência física. Mas podem chegar. E muitas vezes a pessoa que sofre o relacionamento abusivo pode estar tão entranhada na história que, na fase da violência física, costuma perdoar também.
Pode acontecer em qualquer relacionamento, hetero ou homoafetivo. E há mulheres que são abusivas também. Trouxe o exemplo de homens abusivos com mulheres porque isso acaba por ser o padrão em uma sociedade ainda machista. E muitas atitudes costumam ser naturalizadas, como impedir de sair ou controlar a vestimenta. Porém, todo relacionamento abusivo machuca, todo relacionamento abusivo é grave, todo relacionamento abusivo coloca a vítima em uma situação de vulnerabilidade muitas vezes difícil de reconhecer, aceitar ou lutar contra.
É por isso que é importante conversar com amigos e buscar ajuda profissional. Se o relacionamento amoroso gera sofrimento, não necessariamente ele é abusivo. Mas o simples fato de não estar bom já é motivo para trocar uma ideia e repensar. O que o abusador mais rejeita é a ideia da vítima conversar com alguém de fora. E é exatamente a partir da conversar que é possível reconhecer abusos e encontrar forças para sair.
A psicoterapia pode ser um importante fator de saúde nesse processo, na medida em que permite que a vítima analise as condições em que se encontra e perceba a si mesma como forte e capaz. Muitas vezes ela recebe culpas que não são suas, se vê como pouco atraente ou interessante, incapaz de criar outros laços – de amor ou amizade – e, no trabalho psicoterapêutico, é fortalecida a importância da rede de apoio e de laços de afeto e cuidado que podem proteger a vítima do relacionamento e da dor da perda. Afinal, é fundamental reconhecer também que pode haver um processo de luto desse tipo de relacionamento. O companheiro abusivo era um companheiro. Às vezes, em casos de forte isolamento, o único.
Se você se percebe em um relacionamento abusivo, conhece alguém que vivencia algum ou acaba por se reconhecer como um(a) parceiro(a) abusivo, este texto é para reflexão. Contrariando Vinícius de Moraes, o amor não é bom se doer.