É permitido chorar

Eu vou falar dela, mas não é fácil. Ela, que nos dá a compreensão do pôr-do-sol e de tantos outros adeuses, é quase proibida. É quase errado dizer o nome dela em voz alta: tristeza. Ela é aquela coisa que existe na poesia e nas letras de música, naquele samba de saudade e naquele filme bonito e cheio de amor. Mas em nós, não: em nós ela não pode existir. Quando algo doloroso nos ocorre, somos convocados erguer a cabeça, sacudir a poeira e dar a volta por cima. Assim, sorrindo. Porque somos fortes. Porque não podemos sucumbir à dor.

Atendendo pacientes em tratamento de câncer, escuto tantas vezes a estranha associação entre “ser forte” e “não chorar” ou “não ficar triste”. Como se só no riso aberto residisse a força. Muitas vezes é um familiar ou amigo, cheio de intenções amorosas, que faz tais exigências: “você precisa ser forte, precisa manter um sorriso no rosto, o câncer não vai te derrubar – e deixa quieto que o cabelo depois nasce – e, se você ficar triste, pode ser ruim para o tratamento ”. Cada um de nós pode estar nesse lugar de exigir do outro ou de si mesmo o impossível: uma força que não contempla a fragilidade da vida, do tempo, dos dias. Uma força que não permite a lágrima, o pedido de um colo, a lembrança de um samba, a saudade de um ontem, o desejo de um nunca.

É por tudo isso que eu escolho aqui falar da tristeza: para acolhê-la como parte importante do que nos compõe. Para dar permissão para que ela passe – e lave, e leve. Como a água que acaricia nossa pele, carregando suave o que não nos cabe mais. Líquida, deslizante, melodia fina e funda: a tristeza acontece quando o coração ativa as alegrias de ontem ou os medos de amanhã. Acontece quando a gente sabe que não é para sempre, mas pode ser por um bom tempo – tanto as coisas boas quanto as más. Acontece quando precisa acontecer. E necessita ter voz, lágrima, corpo e palavra. E de alguém que a escute. E respeite.

Então, como escrevo sempre meio que em uma ciranda, dou meia-volta e retomo aquele assunto de ser forte. E afirmo, assim, por experiência própria e por um intenso aprendizado na clínica, que também os fortes choram – às vezes mais do que pensam suportar – e que também a força necessita da ternura de uma escuta generosa. Aprendo a cada dia que o câncer, como toda experiência, tem momentos de música vibrante, de silêncio contemplativo e de lágrimas correntes. E que, quando falamos em superação, falamos de atravessar mares revoltos. E que mares assim sempre causam um tanto de medo e ansiedade, até que a terra firme dê segurança para respirar em paz.

Escolho falar da tristeza porque preciso falar da força. E a força da alegria nós até compreendemos: intensa feito a luz do sol, invade a mata densa por entre folhas e galhos e mostra que é possível ver adiante. A força da alegria vibra em infinitas cores, irradiando calor. A força da tristeza, por outro lado, é mais difícil de perceber: assemelha-se à chuva fina, faz um pouco de frio e acontece no escuro. Mas, quando nos expomos por muito tempo à intensidade do sol, compreendemos bem a doçura de uma manhã chuvosa. A importância dessa água para acalentar as sementes que ainda não germinaram. E a urgência do anoitecer.

O perigo, tanto da tristeza quanto da alegria, está no excesso. O excesso da alegria é danoso quando ela não permite que outros sentimentos tomem forma. O excesso da tristeza, por outro lado, é danoso quando ela pró- pria não encontra espaço para fluir. Silenciada, ela cresce: vira excesso. Machuca por dentro. Devora calada. A força da tristeza é a força da pausa para escutar a si mesmo, permitindo tempo para gestar o amanhã. É quando compreendemos que não é o outro que decide o que pode ou não doer em nós. Se dói, nós sabemos. E temos o direito e a necessidade de dizer – no momento em que e do modo como desejarmos dizer.

Artigo publicado no Jornal A Tribuna, em 07/11/15. 
Foto: Google Images (editado)

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