Nem parecia grande coisa: ela conseguiu regar as plantas naquela manhã. Apreciou por instantes uma sutil alegria. E quis lixar as unhas.
Fazia tempo que ela mal se levantava da cama. Os filhos levavam o almoço e o jantar. O prazer era quando a neta vinha. Mas nem sempre. Às vezes, mesmo com a neta, mesmo com o almoço dos filhos, mesmo com o sol e o jardim, ela queria o quarto escuro.
Naquela manhã, no entanto, ela conseguiu regar as plantas. Dar vida o jardim. Uma espécie de cuidar de si mesma. Havia sol lá fora. E ela quis lixar as unhas.
Tanto nos atemos ao que chamamos de grandes vitórias – promoções no emprego, casa nova, começar uma faculdade, passar em um concurso, fazer uma grande viagem – que, por vezes, nos esquecemos de que grande parte da vida corre e escorre no miúdo. É como se, para germinar belezas, precisássemos estar atentos exatamente ao que parece banal. Dessa ideia compreendemos que os primeiros balbucios de um bebê são prenúncios de multiplicidades. Os primeiros movimentos de uma criança são fundamentais experiências com o mundo que as cerca. Nossos choros – desde pequenos até mais adiante – dão voz aos nossos sentimentos e libertam aflições.
Tanto nos atemos ao que chamamos de grandes vitórias que mal olhamos quando ela – que pode ser tantos de nós – conseguiu regar as plantas naquela manhã. Ou fazer o próprio almoço depois de tanto tempo tomada por um quadro depressivo. Mal olhamos – mas vamos olhar – como ele, superando as crises de ansiedade, consegue apresentar um trabalho na faculdade. Sozinho. Quando ele não se esconde mais no banheiro no trabalho: agora conseguiu fazer um amigo. Quando ela abre mão do excesso de obrigações e assiste a um seriado. Quando ela arranja uma namorada e, com tanto medo de não ser aceita, recebe o abraço da mãe.
As pequenas vitórias são os pequenos movimentos diários que parecem invisíveis a quem não nos conhece bem. Desenhar, chorar, gritar, brigar, dizer um não. Mudar de rumo no emprego, conseguir passar um final de semana sem pensar no trabalho, tirar férias de tudo apenas para descansar. Encontrar um amigo, fazer uma caminhada, fazer um artesanato, participar de um movimento de luta política. Ler, escrever, pintar, meditar, fazer uma luta ou uma dança. Às vezes só por hoje. Às vezes sem ter certeza de que conseguirá a mesma vitória amanhã. Não se trata de uma corrida.
O processo de cuidado e cura é um processo que respeita o tempo de cada um. Aquilo que, para outro, pode parecer banal, é grandioso em sua história. É grandioso na história singular de quem vivencia tramas, dramas e dificuldades que às vezes lhe parecem impossíveis. Puxar o fio da possibilidade é principiar um processo poderoso. Não rumo à perfeição, mas rumo à integridade: é abraçar a história sem se prender a ela. História serve é para produzir movimento: por isso ela conseguiu regar as plantas naquela manhã. Apreciou por instantes uma sutil alegria. E quis lixar as unhas.
IMAGEM: drjardim
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